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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Olho d’água

Quem primeiro falou nisso foi Zébio. Estávamos os dois acocorados no granito à beira do remanso do Poço dos Peixes, tentando pescar uns lambaris. Era uma manhã de sol de janeiro, uma brisa soprava suave e as árvores debruçavam-se de tal maneira sobre o rio que pareciam dele querer beber, ou se abraçar consigo mergulhando no reflexo que aparecia logo abaixo, no espelho cristalino. 

O calor já começava a se fazer sentir, as varejeiras zumbiam furiosamente em vôos rasantes incomodadas com nossa presença, e aquela música de câmera que produziam, mais o ar morno, mais a luz balançante dos feixes filtrados pelas ramagens me entorpeciam os sentidos. Quando Zébio falou rompendo o torpor, dei-me conta de que se durante aquela modorra algum mísero lambari tivesse beliscado a isca, eu teria sido arrastado pedra abaixo para um mergulho involuntário.

- Essa água toda vem de um olho só que fica lá em cima, na montanha.
Zébio: um garoto de doze anos presumíveis. Presumíveis porque sua aparência lembra um velho de oitenta. Um daqueles raros crioulinhos que de tão negros parecem azuis, tipo núbio que a miscigenação vai fazer desaparecer gradativamente. Filho de um dos hortelões do lugar, vem de família de avós escravizados que habita o vale desde os tempos coloniais, quando o Tiradentes passava ali vindo de Vila Rica e costumava pousar na casa de Lazinha antes de descer para o Rio de Janeiro. 

Zébio parecia um velho gnomo. Tinha a pele enrugada na face e nos braços, além das pernas tortas um tanto curtas para o corpo. Andava descalço e usava calças que certamente haviam pertencido a alguém maior, mais uns trapos de malha a guisa de camisa. Pois saibam que apesar de pequeno e torto, o garoto era lépido nos movimentos, e com agilidade impressionante escalava em segundos qualquer tronco de árvore antes mesmo que quem estivesse ao seu lado disso se desse conta. 

- Do que é que você ta falando, Zébio? – resmunguei como que despertando.

- Do olho que chora essa água. Fica lá em cima, se o siô quisé eu levo o siô lá.
- Fica longe?

Zébio pensou, olhando p'ra lugar nenhum.

- É uma caminhada na mata, né? Às vezes beirando o córrego e às vezes não beirando. A gente sai de manhãzinha cedo e volta p'ralmoçá.

   Para mim, andarilho inveterado, esse convite era irrecusável. Ainda mais considerando a companhia daquela figurinha indecifrável, misteriosa, e assim, na manhã seguinte, mal nascido o sol, já estávamos fazendo a trilha que margeava o córrego.

  Por cerca de meia hora caminhamos até chegarmos a um remanso cercado de pedras negras, onde cruzamos a vau de cauda, eu com certa dificuldade para manter o equilíbrio, enquanto Zébio saltava sobre os grandes seixos como se impelido por molas, às vezes se voltando para rir das minhas dificuldades, quando então emitia um som que se confundia com o gorgolejo das águas. 

     Ali aquela criatura se comportava como dona do lugar, dali havia surgido e ali vivia, demonstrando conhecer todas as passagens pelos ramos que quase tocavam as pedras. Mostrou-me a toca de um tatu, uma colônia de joaninhas, os dejetos deixados por uma família de quatis e ensinou-me a espremer o fundo das flores das malváceas para sugar seu mel.

    Seguimos por uma insuspeitada trilha deixando as margens do regato, eu com as calças já encharcadas e Zébio mais seco que um figo, sem uma gota sequer lhe molhando as roupas esfarrapadas de todo dia. Caminhamos por uma hora, subindo sempre, e quando suado e esgotado lhe pedi que parasse, ele se acocorou sobre uma raiz de paineira e ali ficou chupando um talo de capim, esperando, enquanto eu, recostado a um tronco recobrava o fôlego. Ofereci-lhe o cantil e ele recusou, dizendo que logo poderíamos beber a água mais fresca e gostosa do mundo. 

     E de fato, quando retomamos o caminho, após alguns minutos descemos uma ravina coberta de avencas e samambaias e chegamos de novo ao leito do regato, quando meus olhos se arregalaram de espanto com a beleza e a majestade do lugar. Os ramos das frondosas árvores se abriram para revelar um céu de azul imaculado, numa clareira forrada de pedras e seixos por onde fluíam miríades de fios d'água, pequeninas cachoeiras produzindo espuma prateada que se desfazia nas margens, cobertas por uma vegetação luxuriante. 

  Beber aquele líquido que parecia germinar das pedras foi uma experiência mística. O silêncio do lugar era quebrado apenas pelo rumorejar dos pequenos veios que desciam preguiçosamente leito abaixo, e não pude deixar de pensar de como era vibrante de vida este recanto afastado de tudo e de todos, e de como possuía seus códigos próprios seguidos desde os tempos imemoriais.

Zébio, acocorado sobre uma de suas pedras, sorria do meu espanto.
 Seguimos subindo pelo regato, e quando parecia que nos aproximávamos do topo da montanha, percebi que as pedras iam rareando no leito, agora margeado por um tapete de vegetação cujas folhas tínhamos que afastar caso quiséssemos acompanhar o fio d'água. Zébio, vagarosa e delicadamente ia à frente, afastando ramo por ramo, folha por folha com um cuidado feminino, mostrando-me onde eu poderia pisar, para não perturbar o caminho da água que agora se reduzira a um pequeno fluxo cristalino. Finalmente parou, e virando-se para trás, colocou o dedo nos lábios de pergaminho, sugerindo silêncio. Obedeci e ouvi um discreto borbulhar intermitente que vinha do chão. 

  O garoto fez um gesto para que eu me aproximasse e se afastou. Com o máximo de cuidado cheguei ao ponto indicado e me abaixei. Lá estava o olho-d'água: pequeno orifício escuro por onde borbulhava um fluxo prateado da água mais cristalina que havia visto. Detive-me a observar este verdadeiro milagre, percebendo que a terra pulsava segundo um ritmo uniforme, marcado por aquele rumorejar musical, único ruído perceptível naquela mata cercada da mais intensa e dramática exibição de Vida. 

  Ali fiquei longo tempo, como que hipnotizado pelo chorar da Terra. Passei então a distinguir outro som. Era um suave murmúrio, uma cantoria transparente de tão delicada, voltei-me para onde pensava que estava Zébio, mas não o vi em parte alguma nem descobri de onde vinha a música. Presentes comigo apenas estavam árvores silenciosas, arbustos luxuriantes que cobriam o solo, além de alguma relva rasteira e do olho-d'água. Todos nós em silêncio, observando-nos mutuamente.

  Existem momentos na vida quando temos a nítida impressão de que o Tempo pára. Nestas ocasiões as coisas comezinhas do dia-a-dia simplesmente cessam de existir, as necessidades dos sentidos e da própria sobrevivência desaparecem, dando lugar a uma sensação de desvinculação e desconhecimento do mundo externo. Embalado por aquele som tão delicado que ouvia, tênue como o fio d'água que fluía aos meus pés, eu me senti como que fazendo parte da própria Terra, recebido no âmago de seus segredos e mistérios.

  Quando finalmente dei por mim, procurei novamente por Zébio. E agora sim, percebi que era capaz de vê-lo, sorrindo e acocorado sobre um tronco semidecomposto, a alguns metros de distância. Era do garoto que vinha o som musical, produzido por seus lábios de pergaminho seco. A imagem daquele velho gnomo mesclava-se suavemente à paisagem como num mimetismo darwiniano, sua pele enrugada, as cores dos trapos que vestia, sua forma tortuosa, tudo parecia fazer parte daquele todo que finalmente acabou por me cercar e me envolver num abraço de boas vindas.  

Aos meus pés, através do olho-d'água, a Vida me observava e continuava fluindo. 

                                   
Mendel Rabinovitch

                                    
                                           

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